domingo, 9 de novembro de 2008

Um Bilhete

Voltava apressado para casa, correndo no meio da rua como se fosse tirar o pai da forca – aliás, estava indo tirar o pai da forca. Recebera um telefonema do pai enquanto estava no trabalho.
“Vou me matar”
Não questionou motivos – não tinha tempo – nem parou pra se perguntar se era verdade – vai que era – simplesmente pulou da cadeira chutou tudo no caminho e começou a correr para tirar o pai da forca. Seu pai tinha uma predileção por forcas. Em jantares em família sempre comentava alegremente que se fosse se matar se enforcaria; dizia que um suicídio por enforcamento era uma obra de arte: não só você tinha um método eficaz de cessar a atividade cerebral como ainda tinha toda aquela coisa do impacto visual: chegar em casa e ver o cadáver de um parente se balançando na penumbra inerte com os olhos arregalados. Ninguém precisa de Goya com um enforcado por perto. “Se parente meu se enforcasse” ele dizia “eu deixava o cadáver lá, pincelava formol e passava bom-ar todo dia de manhã”.
Ele se imaginou fazendo tudo isso enquanto corria pela avenida, e começou a pensar se seu pai combinava com um quadro que tinha na sala, e que se ele tivesse se enforcado no quarto ia ter que mudar ele de lugar. Depois se lembrou que ia tirar o pai da forca, não decorar a casa.
Chegando lá seu pai tinha se enforcado (no quarto), e preso em suas mãos no seu rigor mortis estava um bilhete. O bilhete, escrito com o próprio sangue do pai, dizia, em letras grandes:

BOINA

“Porréisso, taquepariu”, pensou. Seu pai nunca usou uma (pelo menos não que ele lembrasse), nem teve uma em casa, nem nunca falou sobre elas, e sempre preferiu cartolas. O que era meio ridículo. Leu de novo.

BOINA

Intrigado, saiu para passear num parque ali perto. O que aquela palavra queria dizer? Por que seu último pensamento antes de se tornar uma obra de arte foi o de uma peça de vestuário? Por que ele se matou? Ontem mesmo ele estava tão feliz conversando sobre o novo cilindro de cera da orquestra de jazz de Harry Raderman. Talvez ele não tenha gostado. Ou talvez o cilindro tenha derretido. Talvez a orquestra não tenha um trombonista – instrumento preferido de seu pai. Pensou em tudo isso, mas não chegou a um consenso, não chegou a se conformar, não chegou a compreender, não conseguiu parar de repassar mentalmente o bilhete com o último pensamento de seu pai.

BOINA

Então compreendeu. Foi à Riachuelo, comprou uma boina e colocou-a na cabeça do pai morto, mudou o corpo do quarto para a sala e a obra de arte estava completa, finalizada com o acessório no alto de sua cabeça pálida. Constatou alegremente que combinava com o quadro.

2 comentários:

LeoRibeiro disse...

Esse tá do caraaaalho
so perde pro machado! :D

Andrea Ciacchi disse...

fra i lunghi, quest è il migliore, mi sa...